Para Sama, um documentário que é um soco no estômago
Quero partilhar convosco um documentário que me marcou especialmente, durante estes tempos de confinamento. Chama-se “Para Sama” e foi-me recomendado pelo meu colega ortodontista, Dr. Pedro Fonseca. É, provavelmente, um dos documentários mais extraordinários, feito nos últimos anos.
Trata-se de um filme sobre a guerra civil na Síria, mais concretamente sobre a batalha de Aleppo. Porém, ele não é um documentário convencional. É realizado por uma jovem estudante, Waad al-Kateab, que decide escrever uma carta de amor à sua filha, Sama, que nasceu durante o conflito sírio.
Um registo feminino, intenso, comovente e raro a que é impossível ficar indiferente. Ele torna imperativo refletir sobre os horrores da guerra e sobre esta realidade, ao mesmo tempo, tão distante e tão próxima. Porque, afinal, qualquer um de nós podia estar ali. Qualquer um dos nossos filhos ou filhas podia ser Sama.
A História
O documentário compila imagens que vão do ano de 2012 ao ano de 2016. Uma mulher síria filmou durante mais de 500 horas (embora o documentário tenha apenas 96 minutos) um dos mais terríveis conflitos da atualidade. Enquanto isso, a vida acontece e Waad al-Kateab acaba por se apaixonar por um médico, casar, engravidar e dar à luz Sama, a quem dedica esta produção.
Com a sua pequena câmara ou mesmo telemóvel, capta e narra tudo: felicidade, tristeza, esperança, perda e o terror. Na tela, é exposto o dilema do casal, dividido entre sair do país e salvar-se ou ficar e ajudar a salvar as vidas de milhares de inocentes.
O espectador é, simultaneamente, testemunha de uma sequência de atos de violência extrema contra civis, mas também de gestos de puro humanismo. As pessoas resilientes que sobrevivem; os médicos que arriscam a própria vida para tratar dos feridos; os voluntários que procuram animar as crianças, após cada bombardeamento.
Esta produção de Waad al-Kateab, que também conta com a colaboração de Edward Watts, ganhou o Prémio L’Oeil d’Or para melhor documentário no Festival de Cinema de Cannes e recebeu o BAFTA também para melhor documentário.
O olhar da mulher que também é mãe
Para mim, este é um documentário sobre a vida, a morte, a inocência, o caos, o medo e a humanidade. É um registo avassalador que mexeu comigo e me abalou imenso. Impressionou-me bastante o facto desta mulher ser mãe e ter de viver tudo isto com uma criança nos braços. Como também sou mãe, arrepiou-me imaginar como será enfrentar tamanhas ameaças com um bebé para proteger.
Este documentário ajudou-me a relativizar tudo aquilo que estamos a viver neste momento, devido à situação mundial por que passamos. É que mesmo perante a destruição causada pela guerra, todas aquelas pessoas procuram conservar uma certa normalidade. As crianças brincam com os pedaços dos automóveis incendiados. As mulheres cozinham arroz bichado, um dos poucos alimentos disponíveis.
A mensagem desta produção é muito forte, até porque este não é o documentário de alguém que visitou o local para captar imagens. Este é um relato emocional, na primeira pessoa. Aquela era a vida e o dia a dia daquela mulher. As imagens que nós vemos e que nos chocam são a “paisagem” com que aquelas pessoas se deitam e se levantam.
Não há ficção. Não há atores. Não é baseado ou inspirado numa história verídica. Aquilo é a guerra a acontecer diante dos nossos olhos. Aquilo é o que está a acontecer neste momento no planeta que também nós habitamos. É isso que torna esta produção inquietante. Nada daquilo é passado. Tudo aquilo continua atual.
Após ter visto este documentário, senti uma grande necessidade de falar sobre ele. Partilhar aquela realidade tão dura, tão cruel e ainda tão desconhecida para muitos.
Recomendo, por isso, que vejam “Para Sama”. Sozinhos ou acompanhados. De dia ou à noite (alerto que tive dificuldade em adormecer depois de ter visto este documentário). Mas vejam e partilhem esta história com os vossos familiares, amigos e colegas.
Esta realidade também faz parte do mundo em que vivemos. Também faz parte do ADN que todos os humanos partilham. Nesta narrativa, não importa o que está em causa nesta guerra. Não há contextualização política. O foco são as condições desumanas em que em pleno século XXI muitas pessoas vivem.